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sexta-feira, junho 1

Memórias

Muitos caminhos nos conduziam ao vale, o melhor e mais seguro era o do sul quem vinha pela nacional. Ainda ao longe, já a nossa vista alcançava um amontoado de casas, umas grandes outras pequenas pareciam empilhadas. A brilhar à luz do sol, como estrela cintilante, a clarabóia da casa abrasonada, acenava ao viajante. Eiras e espigueiros e muitas medas de palha, lá em baixo junto ao rio, ao fundo do povoado a Igreja muito antiga aonde o povo rezava. Ao chegar, logo na primeira curva existia a loja que vendia arroz, massa, sal e azeite para deitar à panela onde a água já fervia. Logo pela manhã, crianças corriam em sua direção, esfomeadas a comprar pão. Ao meio dia, ainda a tarde se estendia, de braços abertos em cima do balcão, o dono ressonava e dormia, só a muito custo vendia o pão. Ao cair da tarde, próximo ao casarão muito cordial com todos de navalha na mão, o barbeiro cortava as barbas aos que por lá passavam e que já lá vão. Assim terminava o dia, as barbas eram cortadas e o crepúsculo crescia. Fechavam a venda, a taberna abria e muito assustava, quem por lá passava, quem por lá seguia. Era tamanha algazarra que em noites de lua cheia por entre risadas e quartilhadas, a cabeça num turbilhão invocavam os lobos a descerem dos montes e se juntarem a eles a fazer parte da aberração.
Enquanto tudo isto se passava, as três irmãs da casa ao lado olhavam o escuro, a alma penada, desiludida, desamparada, sonhando com muito e não tendo nada. Depois de muito cismar e pensar, o sono que na telha partida as estava a espiar descia de mansinho muito devagar agarrado a um fiozinho de luar. As raparigas adormeciam e felizes sonhavam com príncipes e ladrões à volta da casa aos trambolhões. Depois do sono acabar e o novo dia raiar, as moças cheias de canseira tinham que se apressar de cesto à cabeça pelas redondezas de casa em casa o pão levar. O irmão das moças ia ao monte, à lenha e à fonte de cântaro na mão acarrava água para durante a tarde cozer mais pão. Fazia tudo numa andadura acima e abaixo com toda lisura. Andava descalço de inverno e verão e com os dedos dos pés muito certeiro de supetão atirava pedras às pêras que coradinhas uma a uma lhe vinham parar às mãos. Tudo isto se passava no vale onde existiam regatos de água, árvores com folhas a esvoaçar, o vento passava por entre as casas, pelos jardins, pelas hortas e pelos cães a ladrar. Aos bêbados dava um empurrão, à mulher que berrava um bofetão, à criança que brincava um beijão. Ao fim do dia já cansado, em jeito de despedida rodopiava, rodopiava que nem pião. As pombas, no seu trono alinhadas, observavam tudo e ficavam muito espantadas. Pela noitinha, antes de dormir, à porta do pombal, juntavam-se em pequenos grupos, arrolhavam em cochichos e davam muitas risadas.

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